Delúbio Soares (*)
“Uma bomba sobre o Japão
Fez nascer um Japão na paz”
(“A Paz”, Gilberto Gil e João Donato)
Que a tragédia de Fukushima seja a última na história do Japão. Assim Deus permita e essa é a nossa torcida. Aquele país extraordinário conjuga virtudes e qualidades invejáveis: a cultura milenar alicerça tradições de um povo que se tornou conhecido e respeitado pelo talento empreendedor, a capacidade de trabalho e a qualidade em tudo o que realiza. O nome Japão é sinônimo de grandeza e trabalho.
Primeiro foi o terremoto, depois o tsunami, carregando tudo o que encontrava pela frente. As imagens são terríveis, dantescas até. Casas, automóveis, escolas, estradas e viadutos destruídos, arrasados, totalmente acabados pela fúria da natureza em manifestação inclemente e inapelável. Localidades inteiras de um país conhecido pela organização absoluta de suas comunidades, hoje não passam de destroços retorcidos, de montes de pedras e de lama. O desespero sentou praça na terra do sol nascente. A terceira economia mundial (era a segunda faz pouco tempo, até ser ultrapassada pela China) enfrenta uma tragédia que comove a humanidade e já provoca conseqüências em todos os setores da economia internacional. Faz tempo que um país e uma tragédia não comoviam e não despertavam nas demais Nações os sentimentos de solidariedade e respeito que o Japão e a desgraça que por sobre ele se abateu estão mobilizando.
Para mais além da dor imensa e lancinante, das imagens que nos chegam via satélite, pelo noticiário cruel que a internet despeja a cada instante, existe uma certeza: o Japão se levantará. Aquele povo ordeiro, calado, de férrea disciplina, de imensa criatividade, que superou quadras tão adversas em sua história quanto a atual, saberá sair adiante e reconstruir boa parte do país destruído, reerguer pontes e viadutos, fazer com que nasçam dos restos de um quase-apocalipse escolas e hospitais tão bons quanto os que antes serviam a população das cidades varridas pelo tsunami.
Fukushima hoje preocupa pela possibilidade de um desastre nuclear de proporções ainda incalculáveis, mas absurdas. Os geradores de sua usina nuclear foram danificados e as sucessivas explosões, fruto dos danos nas estruturas do complexo energético, tem piorado a situação já precária. Nada mais injusto, nada mais triste do que um acidente nuclear em terras japonesas. Em 1945 o Japão e seu povo pagaram um preço altíssimo na segunda guerra mundial. Foi sobre Hiroshima que explodiu a primeira bomba atômica, inaugurando a era do terror nuclear, matando milhares de pessoas, deixando outras tantas condenadas à morte lenta por uma série de enfermidades, além de devastar uma linda cidade, chocar o mundo e dividir a história da humanidade entre o antes e o depois daquele fatídico dia 6 de agosto. Apenas três dias depois, Nagasaki e seu povo conheceram a morte que caiu do céu, vinda da segunda bomba explodida, matando outras dezenas de milhares de seres humanos inocentes, marcando a história, derrotando definitivamente o Japão e conseguindo sua rendição absoluta diante do poderoso adversário que descobrira forma tão brutal de vencer um conflito bélico. Vinicius de Morais, em verso tão genial quanto triste, em a “Rosa de Hiroshima”, nos lembrava das crianças “mudas, telepáticas”, das mulheres “rotas alteradas” e da rosa radioativa “estúpida e inválida”.
Mas escrevo recordando essas páginas dolorosas da história de um país distante e tão peculiar para demonstrar que os japoneses são mestres em muitas artes, especialmente na arte da superação. De uma derrota humilhante, com o país ocupado por tropas norte-americanas, aquele povo genial levantou-se para reinventar-se. O imperador Hiroito, um sofisticado botânico, que jamais saíra dos limites dos jardins do palácio real de Akasaka, foi ao rádio e, pela primeira vez, teve sua voz escutada pelos seus súditos. Pregou a paz, a reconstrução e o desenvolvimento. O general McCarthur, comandante das tropas invasoras, talvez por sentir que lidava com um povo brilhante e de sabedoria milenar, deu início a um plano de reconstrução que passou por uma efetiva reforma agrária, pondo fim aos poderosos senhores feudais, os “Shoguns” – imortalizados pelo genial cineasta nipônico Akira Kurosawa – e criando um Estado mini-fundiário, produtivo e moderno. A indústria deu seus primeiros passos, e no início dos anos 50, menos de uma década depois da derrota, da tragédia, da dor, da humilhação, da guerra, das bombas, o Japão já era uma Nação que assombrava o mundo com sua capacidade de responder ao desafio de reinvertar-se e ser maior e melhor do que antes. O Japão não olhou para trás. Olhou muito adiante. Aliás, desconfio que os japoneses nem saibam o que é “olhar para trás”.
Assim também reagem os povos depois das grandes tragédias, das hecatombes, das guerras. Quem poderia imaginar que a Alemanha, depois da aventura liberticida do III Reich, dividida entre os vencedores, separada por um muro e duas ideologias diametralmente opostas, se reencontraria e seria o colosso social e econômico que é exemplo para o mundo? E a Itália, um dos berços da civilização ocidental, de tantas tradições e sabedoria, depois de dilacerada pelo fascismo, tomaria o caminho democrático, construindo uma sociedade sólida e economia das mais prósperas do continente e do mundo? E a África do Sul? Dividida pelo flagelo do apartheid, o absurdo irracional do racismo, retira das masmorras um homem iluminado e, sem medo e sem ódio depois de quase três décadas de cárcere, Nélson Mandela unifica seu povo, supera as diferenças e transforma o país odiado pelo mundo livre numa das mais admiradas democracias e pujantes economias dos dias de hoje, parceira do Brasil, da India e da China nos Bric’s.
O Japão ressurgirá, se levantará, se reerguerá da tragédia que vitimou milhares de seus filhos, que enlutou o mundo, que entristece a todos nós. Superará esse momento duro com leveza, graça e suavidade, dons tão seus. Com a garra daqueles que deixaram as abas nevadas do Monte Fuji e as cerejeiras em flor e vieram, nos porões do velho Kasatu Maru, singrando mares revoltos até o porto de Santos há mais de um século para serem brasileiros de olhos puxados, mas de coração auriverde. Integraram-se totalmente ao nosso país, em todos os setores, em todas as regiões. Nos ensinaram o judô e aprenderam o futebol. Trabalhadores rurais no início do século XX, ainda mal dominando nosso idioma, pegaram firme nos cabos das enxadas e sulcaram as terras em cafezais no interior do Paraná e de São Paulo, desenvolveram nossas indústrias e o comércio, mas nos deram alguns de nossos maiores empresários, arquitetos, jornalistas, artistas, escultores, pintores. Competentíssimos, nos fazem encher o peito de orgulho em diversos países quando nos perguntam por Tomie Ohtake ou Manabu Mabe, por exemplo, e nós respondemos: “Sim, são brasileiros!”
Esse artigo é uma homenagem aos nossos irmãos japoneses, com a mais absoluta certeza de que, uma vez mais, eles superarão a dor e o sofrimento e serão maiores e melhores do que antes. Uma certeza tão grande quanto à de que o sol sempre nascerá por aquelas lindas ilhas do oriente.
(*) Delúbio Soares é professor
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