Delúbio Soares (*)
“Eu sou aquela mulher que fez a escalada da montanha da vida,
removendo pedras e plantando flores.”
(Cora Coralina)
Fernando Pessoa de vez em quando também era Ricardo Reis, Álvaro de Campos ou Alberto Caeiro, seus eternizados “heterônimos”. E eles assinam alguns de seus melhores poemas, sonetos e textos de sua vasta e genial produção intelectual. Ao contrário do grande poeta português, a goiana Ana Lins dos Guimarães Peixoto, nascida em 1889, resolveu ser, ela mesma, a sua grande personagem, viver intensamente o imenso papel que a vida lhe destinava: antes de completar seus quinze anos já era Cora Coralina, nome que Goiás, o Brasil, a poesia e o reconhecimento público consagrariam.Dizer que a poeta que assumiu sua personagem era uma mulher à frente de seu tempo é muito pouco. Cora Coralina é atemporal. Os que lerem seus versos, como os que se debruçarem sobre os livros de Machado de Assis ou se extasiarem com as imagens de Cândido Portinari, estarão em contato com o presente e com o futuro, com mestres que jamais perderão a atualidade de suas obras. O “Bruxo do Cosme Velho”, “Candinho” ou a suave doceira e poetisa da bucólica cidade do Goiás Velho, trazem em suas obras a genialidade de tal forma presente, que o tempo passará e eles estarão adiante, no futuro, anos-luz adiantados. Há outros, é claro. Mas exemplifico com três nomes indiscutíveis e dos quais sou profundo e declarado admirador.
Cora Coralina foi uma das maiores figuras de nossa história. Em todo e qualquer aspecto que se lhe explore e investigue a biografia. Precoce? Perde o pai aos dois meses de idade, menina estudiosa e produz seu primeiro conto antes de completar nove anos, quando a República sequer havia sido proclamada. Visionária? Aos dezesseis anos funda um “A Rosa”, um jornal histórico, impresso em papel cor-de-rosa, baratíssimo e de péssima qualidade, mas com um conteúdo de tal forma avançado e artigos tão bem escritos, que lançava em pleno sertão goiano a centelha da liberação da mulher, com força idêntica a de Bertha Lutz, em São Paulo, ou Nair de Teffé, no Rio de Janeiro. A diferença é que Bertha era uma mulher ilustre e de família rica, zoóloga formada na Sorbonne e nossa primeira deputada federal; Nair uma artista de talento, intelectual polêmica e jovem primeira-dama da República (mulher do Marechal Hermes da Fonseca), e Cora Coralina não mais que uma impetuosa adolescente do Brasil profundo, uma moçoila idealista e sonhadora do ainda pouco conhecido sertão goiano.
Antes de completar seus 33 anos de idade, para espanto e pasmo dos que, apenas alguns anos antes acompanhavam sua difícil luta de difusão de suas idéias e de sua produção poética em Goiás, Cora já era uma figura nacional. Conspiravam contra ela uma absoluta ausência de vaidade pessoal e um marido ciumento. Conjugação que não impediram que, ninguém menos que o genial Monteiro Lobato fosse até ela para convidá-la a integrar o seleto grupo de artistas e intelectuais que mudariam para sempre os rumos de nossa cultura com a Semana de Arte Moderna de 1922. Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Clóvis Graciano, Manuel Bandeira, Menotti Del Picchia, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti, Cândido Portinari, Ronald de Carvalho, Guilherme de Almeida, Guiomar Novaes, Heitor Villa-Lobos, Flávio de Carvalho, Mário de Andrade, Victor Brecheret, Sérgio Milliet e outros nomes notáveis que decretavam o rompimento irrevogável de nossa vida cultura, de nossas artes plásticas, da música, da poesia e da literatura para com o velho, o ultrapassado, o arcaico, o Brasil que importava cultura européia e a consumia em detrimento de sua já rica e excelente produção nativa. Era o Brasil Novo que, enfim, manifestava-se, que brotava para as artes em pleno século XX, ainda que com quase duas décadas de atraso e diante da descrença e da surpresa da sociedade civil e da imprensa conservadora. Cora Coralina foi escolhida – uma das poucas e boas – para ser uma das personalidades que entrariam para a história por aquela guinada irreversível em nossa vida cultural no verão de 1922, consolidada nas múltiplas atividades desenvolvidas no Teatro Municipal de São Paulo.
Impedida pelo marido, o advogado Cantídio Brêtas, Cora não saiu de Jaboticabal, no norte de São Paulo, onde então já residiam. Mas seu nome foi lembrado e citado. O reconhecimento explícito de seu talento e incomensurável valor, deu-se ainda em plena juventude, num país onde isso costuma demorar muito tempo… Cora foi mais que uma poetisa gerada no ventre de Goiás. Foi o único nome fora do eixo Rio-São Paulo chamado pelos maiores artistas e intelectuais daquela brilhante e revolucionária Semana de Arte Moderna a integrar o seleto grupo que mudaria os rumos de nossa vida artística e cultural.
Suave, brejeira, mãe e esposa dedicada, tão avançada ao defender ideais feministas na adolescência e tão desconcertante ao não aceitar o convite de Monteiro Lobato para não desagradar o cioso marido, Cora surpreende de novo em 1932, quando se alista nas forças de São Paulo e vai lutar na revolução constitucionalista. Foi enfermeira, atendendo soldados feridos nas trincheiras. Foi costureira, cozendo uniformes para as tropas de São Paulo. Se lhe dessem um fuzil, certamente, teria defendido seus ideais de liberdade e justiça.
Primeira intelectual goiana a ser reconhecida pelo Brasil e o mundo, Cora Coralina teve sua vasta obra poética aplaudida pela crítica e admirada por Jorge Amado e Carlos Drummond de Andrade, seus íntimos amigos. Prêmio Juca Pato, da União Brasileira dos Escritores e da Folha de S. Paulo, foi a “Intelectual do Ano” de 1983.
Esta semana relembramos mais um aniversário da morte de Cora Coralina. Já lá se vão quase três décadas de sua partida. Parece-me que foi ontem. A memória de sua simplicidade, de seu rosto vincado pelo tempo e marcado pela história, o branco a cobrir como neve seus cabelos, o olhar sereno e tão doce quanto os doces que ela fazia num enorme tacho, sua obra admirável e festejada, a lembrança de nossa amada terra goiana, seu exemplo de vida fecundo e belo.
Tudo isso me faz desconfiar que Cora Coralina vive ainda – quem sabe? – entre nós, seja no verso genial, seja no exemplo generoso.
(*) Delúbio Soares é professor
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