Parte das verdades que os meios de comunicação pretensamente descortinarão nos próximos dias foram construídas segundo crudelíssimos estratagemas de tortura. Outra parte, se não obtida na atitude imediata da mão torturadora, constitui-se de argumentos criados para respaldar a tortura posterior.
Roberto Efrem Filho*
No último setembro, às vésperas das eleições  presidenciais, a Folha de S.Paulo engatinhou até as barras das fardas e  togas do Superior Tribunal Militar, sob o intuito de revelar o mistério  sangrento que ela julga existir no passado de Dilma Vana Rousseff. A  partir da revelação midiática de verdades presentes nos processos  militares, a Folha intentava, naquele momento, solapar a candidatura da  petista, incrustando definitivamente em Dilma o estigma de terrorista.  Nesta quarta-feira, dia 17 de novembro, o jornal em questão anunciou, em  matéria de capa, sua aparente vitória: o STM decide pela abertura  pública do processo sobre a presidente eleita. Em alguns dias, os meios  de comunicação divulgarão seus recortes das informações constantes  naqueles documentos empoeirados. O que revelarão? A torturante  construção de uma verdade torturada.
Foucault definiu a tortura  como um mecanismo de produção de verdades. Nela haveria algo de  inquérito, na medida em que através da violência se investiga ou se cria  um acontecimento, mas também persistiria algo de duelo, de modo que o  torturado digladia com o torturador, resiste à dor, silencia ou rejeita  acusações, desafiando a força absoluta que contra ele se impõe. A  tortura constrói verdades ao tempo em que o torturado é levado à  exaustão da confissão oficialesca ou à incapacidade profunda de afastar  de si incriminações ou fatos, ainda que se negue a confessar. O  torturador entra no jogo vencendo e sai dele auto-proclamadamente  vencedor. O torturado, mesmo resistindo, resta destroçado, julgado e  condenado do início ao fim do processo, perdedor.
Parte das  verdades que os meios de comunicação pretensamente descortinarão nos  próximos dias foram construídas segundo crudelíssimos estratagemas de  tortura. Outra parte, se não obtida na atitude imediata da mão  torturadora, constitui-se de argumentos criados para respaldar a tortura  posterior. Emergirão, assim, das letras de oficiais torturadores e da  edição dos meios de comunicação, fatos esculpidos a sangue pelo próprio  aparelho repressor. Dilma Rousseff foi torturada durante anos sobre os  cadafalsos internos e opacos da ditadura – a qual a Folha designou,  noutro momento, como “ditabranda”. Duelou, contundente, com um Regime  que a obrigou a mentir para proteger as vidas de novos possíveis  torturáveis, como ela própria atestou no memorável discurso de resposta  ao senador Agripino Maia (DEM - RN), quem, àquela ocasião, numa reunião  de uma comissão parlamentar, levantava suspeitas acerca da honestidade  da então ministra. Dilma, contudo, nada guarda de perdedora.
Aqui,  acredito, encontram-se vestígios do que movimenta a Folha de S.Paulo e  os interesses a ela associados. Porque apesar de matérias de capa e  decisões judiciais, alguns setores sociais historicamente vencedores –  ou “dominantes”, para utilizar a expressão da melhor tradição marxista –  não andam vencendo o bastante neste país. Esses setores se valem da  manipulação retórica das bandeiras políticas de movimentos democráticos,  como a da abertura dos arquivos da ditadura, convertendo-as em  alavancas para o ataque à opção popular. Basta relembrar a oposição  desses mesmos setores às propostas do PNDH 3 a esse respeito e o  mencionado oportunismo virá, constrangido, à tona. A abertura dos  arquivos, afinal, trata-se originariamente de uma investida democrática  contra os segredos de déspotas e não de um afã punitivo sobre pessoas  que se levantaram contra o autoritarismo, as quais, a despeito de  terminologias seletivas e conservadoras, nada têm de “terroristas”.
Militares  e militantes, é verdade, estavam em lados opostos de um mesmo conflito.  Entre eles, no entanto, faz-se impossível comparar responsabilizações.  Não se encontravam numa “guerra justa” – se é que isso já existiu! –  porém em meio a um processo categoricamente assimétrico, em que um  Estado, aí sim, terrorista, mobilizava suas truculentas estruturas por  cima de agrupamentos de homens e mulheres, todos em sua maioria jovens,  como era o caso de Dilma Rousseff, contestadores daquela ordem  arbitrária. Se alguns desses grupos e pessoas praticaram, como alguns  alarmam, assaltos a bancos ou seqüestros – e não se tem, até hoje,  comprovação de que Dilma é uma dessas pessoas – e se desses atos  resultaram, por exemplo, mortes acidentais, a quem caberia, enfim, a  culpabilização? A realidade daqueles anos, torturada tal qual a verdade  extorquida e recriada nos porões, muitas vezes exigiu mais daqueles  militantes do que é humanamente exigível de qualquer um dos filhos da  minha geração estudantil.  Seria deles então a culpa? Poderia ser Dilma  Rousseff chamada de assassina? Não. Do contrário, estaríamos nós  convergindo para mais uma confissão oficialesca, uma verdade  dolorosamente produzida, uma ficção estruturada sobre um passado que  querem brando e solenemente esquecido. 
* Roberto Efrem Filho é mestre em direito pela UFPE e docente do Departamento de Ciências Jurídicas da UFPB.
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Cuca Falcão por e-mail
 
 
 
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