Carta aberta a Fernando Henrique Cardoso
O  plano Real não derrubou a inflação e sim uma deflação mundial que fez  cair as inflações no mundo inteiro. A inflação brasileira continuou  sendo uma das maiores do mundo durante o seu governo. O real foi uma  moeda drasticamente debilitada. Isto é evidente: quando nossa inflação  esteve acima da inflação mundial por vários anos, nossa moeda tinha que  ser altamente desvalorizada. De maneira suicida ela foi mantida  artificialmente com um alto valor que levou à crise brutal de 1999.  Outro mito é que seu governo foi um exemplo de rigor fiscal. Um governo  que elevou a dívida pública do Brasil de 60 bilhões de reais em 1994  para mais de 850 bilhões, oito anos depois, é um exemplo de rigor  fiscal? O artigo é de Theotonio dos Santos.
Theotonio dos Santos
Meu caro Fernando,
Vejo-me  na obrigação de responder a carta aberta que você dirigiu ao Lula, em  nome de uma velha polêmica que você e o José Serra iniciaram em 1978  contra o Rui Mauro Marini, eu, André Gunder Frank e Vânia Bambirra,  rompendo com um esforço teórico comum que iniciamos no Chile na segunda  metade dos nos 1960. A discussão agora não é entre os cientistas sociais  e sim a partir de uma experiência política que reflete contudo este  debate teórico. Esta carta assinada por você como ex-presidente é uma  defesa muito frágil teórica e politicamente de sua gestão. Quem a lê não  pode compreender porque você saiu do governo com 23% de aprovação  enquanto Lula deixa o seu governo com 96% de aprovação. Já discutimos em  várias oportunidades os mitos que se criaram em torno dos chamados  êxitos do seu governo. Já no seu governo vários estudiosos discutimos,  já no começo do seu governo, o inevitável caminho de seu fracasso junto à  maioria da população. Pois as premissas teóricas em que baseava sua  ação política eram profundamente equivocadas e contraditórias com os  interesses da maioria da população. (Se os leitores têm interesse de  conhecer o debate sobre estas bases teóricas lhe recomendo meu livro já  esgotado: Teoria da Dependencia: Balanço e Perspectivas, Editora  Civilização Brasileira, Rio, 2000).
Contudo nesta oportunidade me  cabe concentrar-me nos mitos criados em torno do seu governo, os quais  você repete exaustivamente nesta carta aberta.
O primeiro mito é  de que seu governo foi um êxito econômico a partir do fortalecimento do  real e que o governo Lula estaria apoiado neste êxito alcançando assim  resultados positivos que não quer compartilhar com você... Em primeiro  lugar vamos desmitificar a afirmação de que foi o plano real que acabou  com a inflação. Os dados mostram que até 1993 a economia mundial vivia  uma hiperinflação na qual todas as economias apresentavam inflações  superiores a 10%. A partir de 1994, TODAS AS ECONOMIAS DO MUNDO  APRESENTARAM UMA QUEDA DA INFLAÇÃO PARA MENOS DE 10%. Claro que em cada  pais apareceram os “gênios” locais que se apresentaram como os autores  desta queda. Mas isto é falso: tratava-se de um movimento planetário.
No  caso brasileiro, a nossa inflação girou, durante todo seu governo,  próxima dos 10% mais altos. TIVEMOS NO SEU GOVERNO UMA DAS MAIS ALTAS  INFLAÇÕES DO MUNDO. E aqui chegamos no outro mito incrível. Segundo você  e seus seguidores (e até setores de oposição ao seu governo que  acreditam neste mito) sua política econômica assegurou a transformação  do real numa moeda forte. Ora Fernando, sejamos cordatos: chamar uma  moeda que começou em 1994 valendo 0,85 centavos por dólar e mantendo um  valor falso até 1998, quando o próprio FMI exigia uma desvalorização de  pelo menos uns 40% e o seu ministro da economia recusou-se a realizá-la  “pelo menos até as eleições”, indicando assim a época em que esta  desvalorização viria e quando os capitais estrangeiros deveriam sair do  país antes de sua desvalorização, O fato é que quando você flexibilizou o  cambio o real se desvalorizou chegando até a 4,00 reais por dólar. E  não venha por a culpa da “ameaça petista” pois esta desvalorização  ocorreu muito antes da “ameaça Lula”. ORA, UMA MOEDA QUE SE DESVALORIZA 4  VEZES EM 8 ANOS PODE SER CONSIDERADA UMA MOEDA FORTE? Em que manual de  economia? Que economista respeitável sustenta esta tese?
Conclusões:  O plano Real não derrubou a inflação e sim uma deflação mundial que fez  cair as inflações no mundo inteiro. A inflação brasileira continuou  sendo uma das maiores do mundo durante o seu governo. O real foi uma  moeda drasticamente debilitada. Isto é evidente: quando nossa inflação  esteve acima da inflação mundial por vários anos, nossa moeda tinha que  ser altamente desvalorizada. De maneira suicida ela foi mantida  artificialmente com um alto valor que levou à crise brutal de 1999.
Segundo  mito; Segundo você, o seu governo foi um exemplo de rigor fiscal. Meu  Deus: um governo que elevou a dívida pública do Brasil de uns 60 bilhões  de reais em 1994 para mais de 850 bilhões de dólares quando entregou o  governo ao Lula, oito anos depois, é um exemplo de rigor fiscal?  Gostaria de saber que economista poderia sustentar esta tese. Isto é um  dos casos mais sérios de irresponsabilidade fiscal em toda a história da  humanidade.
E não adianta atribuir este endividamento colossal  aos chamados “esqueletos” das dívidas dos estados, como o fez seu  ministro de economia burlando a boa fé daqueles que preferiam não  enfrentar a triste realidade de seu governo. Um governo que chegou a  pagar 50% ao ano de juros por seus títulos para, em seguida, depositar  os investimentos vindos do exterior em moeda forte a juros nominais de 3  a 4%, não pode fugir do fato de que criou uma dívida colossal só para  atrair capitais do exterior para cobrir os déficits comerciais colossais  gerados por uma moeda sobrevalorizada que impedia a exportação,  agravada ainda mais pelos juros absurdos que pagava para cobrir o  déficit que gerava.
Este nível de irresponsabilidade cambial se  transforma em irresponsabilidade fiscal que o povo brasileiro pagou sob a  forma de uma queda da renda de cada brasileiro pobre. Nem falar da  brutal concentração de renda que esta política agravou dráticamente  neste pais da maior concentração de renda no mundo. Vergonha, Fernando.  Muita vergonha. Baixa a cabeça e entenda porque nem seus companheiros de  partido querem se identificar com o seu governo...te obrigando a sair  sozinho nesta tarefa insana.
Terceiro mito - Segundo você, o  Brasil tinha dificuldade de pagar sua dívida externa por causa da ameaça  de um caos econômico que se esperava do governo Lula. Fernando, não  brinca com a compreensão das pessoas. Em 1999 o Brasil tinha chegado à  drástica situação de ter perdido TODAS AS SUAS DIVISAS. Você teve que  pedir ajuda ao seu amigo Clinton que colocou à sua disposição ns 20  bilhões de dólares do tesouro dos Estados Unidos e mais uns 25 BILHÕES  DE DÓLARES DO FMI, Banco Mundial e BID. Tudo isto sem nenhuma garantia.
Esperava-se  aumentar as exportações do pais para gerar divisas para pagar esta  dívida. O fracasso do setor exportador brasileiro mesmo com a  espetacular desvalorização do real não permitiu juntar nenhum recurso em  dólar para pagar a dívida. Não tem nada a ver com a ameaça de Lula. A  ameaça de Lula existiu exatamente em conseqüência deste fracasso  colossal de sua política macro-econômica. Sua política externa submissa  aos interesses norte-americanos, apesar de algumas declarações críticas,  ligava nossas exportações a uma economia decadente e um mercado já  copado. A recusa dos seus neoliberais de promover uma política  industrial na qual o Estado apoiava e orientava nossas exportações. A  loucura do endividamento interno colossal. A impossibilidade de realizar  inversões públicas apesar dos enormes recursos obtidos com a venda de  uns 100 bilhões de dólares de empresas brasileiras. Os juros mais altos  do mundo que inviabilizava e ainda inviabiliza a competitividade de  qualquer empresa.
Enfim, UM FRACASSO ECONOMICO ROTUNDO que se  traduzia nos mais altos índices de risco do mundo, mesmo tratando-se de  avaliadoras amigas. Uma dívida sem dinheiro para pagar... Fernando, o  Lula não era ameaça de caos. Você era o caos. E o povo brasileiro correu  tranquilamente o risco de eleger um torneiro mecânico e um partido de  agitadores, segundo a avaliação de vocês, do que continuar a aventura  econômica que você e seu partido criou para este país.
Gostaria  de destacar a qualidade do seu governo em algum campo mas não posso  fazê-lo nem no campo cultural não criou um só museu, uma só campanha  significativa. Que vergonha foi a comemoração dos 500 anos da  “descoberta do Brasil”. E no plano educacional onde você não criou uma  só universidade e entou em choque com a maioria dos professores  universitários sucateados em seus salários e em seu prestígio  profissional. Não Fernando, não posso reconhecer nada que não pudesse  ser feito por um medíocre presidente.
Lamento muito o destino do  Serra. Se ele não ganhar esta eleição vai ficar sem mandato, mas esta é a  política. Vocês vão ter que revisar profundamente esta tentativa de  encerrar a Era Vargas com a qual se identifica tão fortemente nosso  povo. E terão que pensar que o capitalismo dependente que São Paulo  construiu não é o que o povo brasileiro quer. E por mais que vocês  tenham alcançado o domínio da imprensa brasileira, devido suas alianças  internacionais e nacionais, está claro que isto não poderia assegurar ao  PSDB um governo querido pelo nosso povo. Vocês vão ficar na nossa  história com um episódio de reação contra o vedadeiro progresso que  Dilma nos promete aprofundar. Ela nos disse que a luta contra a  desigualdade é o verdadeiro fundamento de uma política progressista. E  dessa política vocês estão fora.
Apesar de tudo isto, me dá pena  colocar em choque tão radical uma velha amizade. Apesar deste caminho  tão equivocado, eu ainda gosto de vocês ( e tenho a melhor recordação de  Ruth) mas quero vocês longe do poder no Brasil. Como a grande maioria  do povo brasileiro. Poderemos bater um papo inocente em algum congresso  internacional se é que vocês algum dia voltarão a freqüentar este mundo  dos intelectuais afastados das lides do poder.
Com a melhor disposição possível mas com amor à verdade, me despeço
(*) Theotonio Dos Santos é Professor Emérito da Universidade Federal Fluminense, Presidente da Cátedra da UNESCO e da Universidade das Nações Unidas sobre economia global e desenvolvimentos sustentável. Professor visitante nacional sênior da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
thdossantos@terra.com.br
http://theotoniodossantos.blogspot.com
 
 
 
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